Por Dr José Carlos de Oliveira.
Um dos melhores negócios, na fronteira com o vizinho Congo, era a venda de sal, peixe seco e feijão branco, tanto na povoação mercantil de
Kimpangu em frente da povoação fronteiriça de Kimbata do lado português (repare‑se na similitude do termo Mbata) e ainda nos mercados do Malele, (já no
interior da então República do Congo na fronteira de Kindopolo‑Banza Sosso). Já nos meados dos anos sessenta do século passado, foi construído o posto fiscal do Béu onde se efectuava
periodicamente o ‘Mercado Internacional do Beú’, no fundo um pequeno nzandu, (que não devemos confundir com a povoação comercial do Béu, situada a cerca de vinte quilómetros para o interior, no
percurso de Kuilo Futa, Sakandika). Os nzandu (mercados) do lado da República do Zaire estiveram sempre activos e, nesta circunstância, duplicaram a sua azáfama, uma vez que
os minkiti ou kankitas (os comissionistas zombo), que tinham deixado de operar do lado dos portugueses, passaram a fazê‑lo do lado de lá da fronteira.
‘Monsieur Vincent’ deslocava‑se do seu posto fronteiriço para tributar as mercadorias que passavam a ‘fronteira’ sessenta quilómetros adiante.
Uma pequena secretária, duas cadeiras e um coberto de colmo constituíam o precário e improvisado posto fronteiriço zairense, logo a seguir às longarinas de um pontão, que separava fisicamente o
espaço internacional entre as duas fronteiras. Era uma situação bizarra, difícil de descrever, mas que as fotografias anexas a esta secção, traduzem, para quem venha a investigar a situação,
aspectos quase incompreensíveis da vida entre os zombo, note‑se que a sua fraca qualidade deve‑se a terem sido retiradas de quadrículas de um filme de 8mm, uma vez que, no nosso mercado, que
saibamos, não existem digitalizadoras que permitam captar melhor os ‘frames’ de oito milímetros. Todavia, estes documentos fotográficos parecem‑nos da maior oportunidade e relevância para apoiar
o nosso texto, duvidamos até que existam outros que se refiram ao contexto desta secção.
Como entender um vastíssimo planalto, com um cabeço, em que estava instalado o novo posto do Beú? De um lado e de outro desse pequeno posto da
autoridade portuguesa, existiam dezenas de quilómetros de ‘fronteira que nunca fora fronteira’. Nada, absolutamente nada, impedia que as populações, os guerrilheiros da FNLA, os minkiti, os
comerciantes portugueses, que todos os dias a pé, de bicicleta ou de camião, passavam, sem qualquer espécie de controlo, os seus panos do Kongo, os perfumes Mamiwata, o gengibre, a kola, os
sabonetes Lifeboy e Assepso, enfim tudo, para que depois todos cumprissem aquele ritual de atravessar legalmente a fronteira de ambos os lados. Para evitar confusões, diremos que os mais
respeitadores eram os portugueses e a explicação é muito simples: eram os únicos brancos, a cor da pele e as outras características frenológicas, facilmente os denunciariam, se sem a conivência
dos zombo, se lembrassem de atravessar a fronteira.
Algumas linhagens, por interesses próprios circunstanciais, passaram a residir quilómetros adiante, do lado de lá da fronteira, bastando‑lhes
atravessar a fronteira, para continuarem em ‘casa’. Este fenómeno, só agora (passados quase cinquenta anos), começa a revelar‑nos alguns dos seus contornos (próprios de populações de fronteiras
políticas). Assim como se é professor, engenheiro ou agricultor, também se é comerciante, mas sê‑lo, em zona de fronteira, entre dois Estados é o que pudemos apelidar de ‘especialista em mercados
de fronteira’. Quando os postos fronteiriços (por exemplo, de Valença do Minho ou de Elvas) estavam em actividade, em Portugal, passava‑se o mesmo tipo de fenómeno. Ainda hoje, essas populações
sentem uma certa saudade dos benefícios que usufruíam no seu pequeno negócio de fronteira.